En-vertebrados
Reflexão crítica de Caio Silviano sobre In-Trópicos de Thiago Alixandre. Esta é uma reflexão crítica sobre a fruição do vídeo do espetáculo de dança “In-Trópicos” e da conferência coreografada sobre o mesmo.
Esse exercício reflexivo tem como objeto a análise de uma proposta artística cuja apreciação só foi permitida graças às possibilidades tecnológicas de transmissão com as quais contamos nos dias de hoje e por isso acho essencial começar este texto enunciando que toda e qualquer arte mediada por telas somada a uma capacidade desnivelada de interrupção do evento, que se configura principalmente no caso dos streamings, é um possível pulverizador da postura ativa de espectador. Em qualquer circunstância dentro dos padrões da normalidade, a escolha de transmissão virtual de um espetáculo de dança e teatro, para além do caso de objeto de estudo específico, tenderia a enfraquecer a atitude do espectador: a possibilidade de “pausar” prejudica a qualidade da presença.
É interessante pensar que até no caso do cinema – uma arte de telas eletrônicas – existe essa problemática, como se pode ver na fala de Martin Scorcese sobre seu filme “O irlandês” lançado em plataforma de streaming:
Idealmente, eu gostaria que você fosse ao cinema para observá-lo numa tela enorme, do começo ao fim. E eu sei, é longo - você precisa se levantar, ir ao banheiro, esse tipo de coisa, eu entendo - mas também, em casa, eu acho que se você puder parar por uma noite, sabendo que não vai atender o telefone ou se levantar muito, pode funcionar!1
1 https://rollingstone.uol.com.br/noticia/martin-scorsese-nao-recomenda-assistir-o-irlandes-
Alguns pensadores vão problematizar a própria matriz do cinema, mas essa não é a função desse texto e sim falar sobre o que a experiência mediada propiciou a alguém que se propôs a construir uma leitura dela.
As artes do espetáculo se valem, necessariamente, de algum tipo de experiência compartilhada ou como diz Jorge Dubatti - teatrólogo argentino – no caso do teatro, uma “arte convivial”:
Segundo ele, o teatro é conformado pela tríade acontecimento convival, acontecimento poiético e expectação, necessariamente associados. Portanto, o convívio deve estar associado à poiésis, que é o material artístico e sua criação, portanto, necessariamente poiético, ainda que possa ou não ser ficcional, trata-se de um duplo frente à realidade e não necessariamente sua negação.2
2 https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102232014251
É interessante ressaltar a importância do convívio no acontecimento, pois mesmo em circunstâncias globais convencionais esse pilar do pensamento artístico tem sido esquecido. Caso pensássemos exclusivamente na coerência desta tríade, o evento em si estaria prejudicado e invalidado de início, mas em tempos de aridez da presença parece que é a ética que substitui a variável do convívio e permite que por um lapso histórico de tempo, a arte se erga sobre uma modalidade incoerente de presença.
Ao receber o link para o trabalho na íntegra, uma ação que poderia ser a princípio inócua, consegue-se apreender a escolha de uma série de signos que só seriam permitidos em um tempo histórico que ainda não existe, um futuro não-pandêmico, e mesmo não sendo uma defesa da urgência da arte a qualquer custo, a ética incoerência desse evento se mantém no mínimo interessante.
Ao começar a leitura do vídeo na íntegra, têm-se dificuldade de compreender o conteúdo do poema inicial que contém algumas chaves de interpretação da obra. O que se escuta principalmente é a relação com a onda e seu incontrolável movimento culminando na espuma sobre a areia. Talvez esse movimento da onda dialogue com o campo semântico do conceito de entropia: é essa onda imponderável que propicia, através de sua imensa energia cinética, um estado de equilíbrio após um momento de crise profunda das sociedades estagnadas em melancolia.
Esse sistema em crise se encontra dentro do homem, um embate fisiológico e psíquico diário pelo equilíbrio de um sistema que se movimenta por conta de uma crise. A projeção inical ressalta as veias e canais desse humano- sistema que tenta se erguer do chão ou até da rotina diária de se erguer após uma noite de sono bem ou mal dormida.
Uma canção aguda rasga a cena e mesmo que não se tenha o entendimento sobre a obra barroca europeia e a qualidade vocal da peça escolhida, a sonoridade traz uma sensação de certa solidão e a canção que é produto de processos fisiológicos humanos resulta em uma dança do canto. A voz busca a entropia com a dança e o gesto é resultado da energia da voz solitária, como acontece de forma invertida em outro momento do espetáculo em que a voz gutural surge de movimentos espasmódicos.
Ser um humano-sistema talvez seja a busca pelo equilíbrio da incoerência e a trajetória dessa atividade implica em dar e levar os golpes que esculpem a psique de cada sujeito. Os movimentos que gestualizam o receber e o tomar golpes mostram o sistema de um só que entra em busca da entropia para si mesmo. Curiosamente até o formato de solo é pertinente para adequar a obra à inevitabilidade da crise, uma vez que, o sujeito só não se manterá em equilíbrio eternamente.
A qualidade de movimento por vezes faz lembrar um estado dilatado que parece estar permeado pela água própria onda que Wisnik escreveu. Movimentos como os ombros que vão e vem se barrando ou ingerir e expelir, a princípio, parecem construir um trabalho sobre as oposições ou binômios, entretanto, é justamente o artista que funciona de frasco onde essas oposições se implicam mutuamente em sua contradição.
A relação com a iluminação tem a interessante escolha de manter o foco de luz delimitador da cena mesmo quando o bailarino está dançando fora do espaço onde “deveria estar”. Saber que a dança acontece fora do espaço estabelecido nos dá uma pista para que busquemos nos atentar por elementos não revelados, portanto envoltos de eroticidade revolucionária, que se movimentam em direção ao foco, ou seja, o que não deveria ser ainda é tal qual o inconsciente
Surge inclusive dessa escuridão um figurino de tons mais escuros, tecido poroso, meio corpo / meio trapo, permeado de ar e luz daquele espaço e nos milímetros entre o farrapo e o corpo, há sombra: é necessário escurecer o claro e esclarecer a escuridão para abraçar a necessária contradição.
O movimento é a regra dos sistemas e não havendo movimento o corpo não se sustenta e cai, culminando em mais uma modalidade de sistema onde a nova dança se constitui a partir da queda. Esse movimento, entretanto, é ausente de objetivo já que o olhar não aguça o gesto em direção a um resultado almejado. Distante e inconcluso, o olhar dança junto com os braços e pernas que brigam para se sustentar por meio de seus tropeços. É interessante pensar que até o tropeço implica em um campo de alguma modalidade de “Outro”: nem que seja somente o espaço considerado como chão buscará a entropia com o ser solitário.
O final do espetáculo é contundente ao colocar o corpo-solidão buscando o outro, que no caso é a própria plateia, para compartilhar novos acessos e comunhões. Um mesmo canto compartilhado de levante se torna a construção de um vocabulário para alteridades possíveis em primavera e sendo esse canto um frevo - uma escolha tão dissonante do corpo do espetáculo - ela encontra em sua dissonância a sua coerência, já que é no frevo que se faz dança das quedas e dos trupés.
Essa experiência não seria inócua se já tivesse servido à esta leitura, pois no campo das afecções ela ainda estaria provocando uma constelações de afetos possíveis nas circunstâncias da crise sanitária mundial, mas a apreciação do vídeo do espetáculo ainda se somou a conferência coreografada e sobre este evento cabe uma observação interessante da área de estudos teatrais que pode ajudar a formular conceitualmente esse evento.
O professor Flávio Desgranges em sua obra “A pedagogia do espectador”, elenca algumas práticas artístico-pedagógicas comuns da década de 1970 que nasce conceitualmente na França sob a formulação de “animações teatrais”:
As trupes passaram, assim, a visitar com maior freqüência as escolas, propondo diversas atividades de expressão dramática, com o objetivo de sensibilizar crianças e jovens para o teatro. Essas práticas, que passaram a ser conceituadas como animações teatrais, tanto podiam organizar-se em torno de um espetáculo teatral, dinamizando a compreensão da encenação vista pelos alunos, quanto se estruturar como oficinas teatrais autônomas que, trabalhando a expressividade e criatividade dos participantes, não tinham necessariamente ligação com uma determinada peça de teatro .3
3 DESGRANGES, Flávio; A pedagogia do espectador; p.49, 3a ed, São Paulo, Hucitec, 2015.
Seguindo os estudos de Desgranges no caso de um evento semelhante à conferência coreografada na área teatral, poderíamos afirmar que haveria uma modalidade de animação teatral periférica:
As animações teatrais periféricas aconteciam antes ou depois da apresentação do espetáculo. As atívidades propostas antes da peça tinham o intuito de preparar os alunos- espectadores para a leitura da peça que seria vista e, quase sempre, sublinhavam alguns aspectos artísticos do espetáculo que, assim, poderiam ser mais bem observados pelos alunos no ato de recepção da obra.4
4 Idem, p.50.
Haveria ainda uma categoria específica dessa modalidade de animação teatral periférica que se aplicaria ao caso dessa analogia, que seria a animação de leitura transversal:
Nas animações de leitura transversal, que tinham corno objetivo capacitar alunos- espectadores para a decodificação dos signos do espetáculo, o enfoque dado às atividades propostas reduzia a importância da percepção imediata provocando o espectador aempreender uma interpretação da encenação, estimulando-o a efetivar sua compreensão dos significados contidos nas concepções dramatúrgícas, intenções gestuais, opções cenográficas e demais criações dos realizadores do espetáculo. Propiciar aos alunos a compreensão do espetáculo não se reduzia à trama, mas se constituía de uma totalidade de signos, pois ensinava-se a reconhecer a especificidade da arte teatral e elaborar os elementos semióticos presentes na encenação.5
5 Ibidem, p.55
A partir desses conceitos poderia até se forçar uma conceituação do evento como uma animação de leitura transversal – apesar de não ser talvez a expressão mais interessante para delimitar o sentido desta conferência. Entretanto, vale a reflexão de que o evento era possivelmente uma forma híbrida, pois era espetáculo e não somente ação preparatória, e que talvez a mistura entre o aquecimento dos leitores e a realização da obra, seja uma das ferramentas mais potentes para a formação de novas plateias.
Foi somente através desses recursos fornecidos por essa modalidade de evento que pode-se fazer uma última reflexão sobre os movimentos de um ser de coluna fraturada que realiza uma negação ao tentar olhar para a esquerda e a direita, concretizando a barbárie que Walter Benjamin retrata em “Experiência e Pobreza”:
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.6
6 BENJAMIN, Walter; Experiência e Pobreza;
É esse ser que é obrigado a olhar para trás como se fosse a sua frente, uma vez que, perdeu a capacidade de torcer o corpo e caminhar para o futuro lembrando do passado, que é o resultado da barbárie. É contra esse homem que se faz necessária uma plateia que cante o orgulho tristonho de blocos carnavalescos que ficaram pelo caminho. É o ímpeto artístico traduzido nas escolhas de signos e na escolha dos eventos realizados que permite sujeitos históricos ao invés de feras fraturadas que não olham para trás.
A entropia deve acontecer também entre as vértebras promovendo seres humanos em equilíbrio com o outro, havendo um encontro de En-vertebrados: sujeitos com coluna vertebral catalisada na crise que demonstra a necessidade do Outro. Precisam-se propor novas estruturas ósseas em levante e novas colunas para seres históricos, já enunciaria Maiakóvski: Esta noite ficará na História. / Hoje executarei meus versos / na flauta de minhas próprias vértebras7.
7 Maiakóvski, Vladimir; “A flauta-vértebra”
Caio Silviano
É bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e bacharel em teatro pelo Centro de Artes e Educação Célia Helena.
Realizou formação na Stanislavsky Summer School ministrado pelo Teatro de Arte de Moscou.
É ator, diretor e dramaturgo do Grupo Pano.
Comments
No response to “Resenha Crítica da mostra On-line: In-Trópicos por Caio Silviano ”
Post a Comment | Postar comentários (Atom)
Postar um comentário